PRIMEIRA PARTE (Só clicar)
► Essa segunda parte é como uma extra, espero que gostem.
[3 anos depois…]
Novamente estou aqui… parado em frente ao túmulo, fitando, triste, o nome gravado na lápide áspera e gélida.
Quantos anos fazem que você partiu? Pelas amargas contas que faço todo dia, já se foram três anos e eu ainda continuo vindo lhe visitar, mesmo não merecendo estar na sua presença.
Diferente dos outros dias, que venho aqui somente para me torturar, hoje tenho algo para lhe contar. Nada tão importante, mas sinto-me obrigado a compartilhar contigo.
Encontrei sua mãe esta semana, acidentalmente, no estacionamento do supermercado. Durante nossa breve troca de palavras, enxerguei, nos olhos dela, que ainda me culpa pela sua morte.
Eu deveria ter realizado o pedido de desculpas que ela aguarda desde o dia que me acusou pela sua partida tão repentina, porém, novamente, fui incapaz de proferir os vocábulos. Por que? Se eu pedisse perdão estaria admitindo em voz alta, pela primeira vez, que também me sinto responsável pela sua morte.
Sim, continuo o mesmo covarde de anos atrás. Sou aquele mesmo cara que negou lhe apresentar para a família como namorado, que escolheu namorar uma mulher, de modo a escapar do preconceito e dos olhares decepcionado dos meus pais.
Sabe a razão de vir te visitar?
Com certeza não é por causo do amor que sinto por você. O real motivo é a esperança que alimento de obter o seu perdão. Acredito na ilusão que só encontrarei a paz e deixarei de ser atormentado pelo seu fantasma em meus pesadelos quando, finalmente, me absolver do meu crime.
Gostaria de viver apenas um dia sem me sentir um completo miserável.
Por que foi atrás de mim naquela noite, Kaio?
Você, meu querido Kaio, não deveria ter presenciado aquela cena do restaurante. Não merecia ter me visto apresentando ela aos meus pais. Sempre que imagino você do lado de fora, na garoa, nos assistindo, sinto repúdio de mim mesmo. Essas imagens me perseguem, me atormentam, me torturam, constantemente, servindo para me recordar, dia após dia, que a minha covardia e minhas inseguranças tiveram um preço alto: sua vida.
Deve se recordar que lhe disse em outras visitas que não me casei com aquela mulher ou outra. Assim como, também, nunca mais estive em um relacionamento sério com ninguém. Os meus únicos companheiros têm sido a culpa e a garrafa de uísque, esta última que, inclusive, estou segurando neste instante. Vou abri-la, assim que sair do cemitério; preciso dela para continuar suportando minha cruz.
Não mereço ser feliz, nem por um minuto sequer… Como o responsável pela sua morte, devo pagar, vivendo uma vida medíocre.
Sei o que deve estar pensando agora Kaio, que ainda sou aquele mesmo fraco e covarde de sempre. Você está certo! Sim, admito, não mudei ao longo desses últimos anos, tanto que até hoje não contei diretamente aos meus pais que sou gay.
Eles sabem da minha sexualidade, mesmo que não falem. Tiveram a confirmação no dia que me viram ajoelhado no asfalto, sobre o seu corpo ensanguentado e desfalecido, implorando, entre soluços, que não me abandonasse.
Bebo, quase todos os dias, com o objetivo de esquecer por breves momentos do seu rosto pálido, aconchegado no concreto, e dos seus olhos ocos de vida. Bebo até perder a consciência para abafar a voz que grita na minha cabeça, acusando-me da sua morte.
Se eu não tivesse lhe dito que apresentaria uma mulher aos meus pais, você não teria atravessado a avenida, desnorteado e preso na sua dor. Por minha culpa, o homem que eu amava, partiu. O que me resta é a lembrança do meu crime, que me atormenta e me proíbe de viver.
Espero que quando nos reencontrarmos você já tenha me perdoado Kaio e que me permita dizer que se pudesse voltar no tempo, teria feito diferente.
Se eu soubesse naquela época que minha covardia cobraria um preço tão alto, faria diferente.
Preciso partir Kaio, prometo retornar, como sempre faço. Nunca deixarei de te visitar…
— Eu te amo Kaio, até a próxima vez.
[...]
O coveiro assistia, curioso, o rapaz se afastar do túmulo e seguir para a saída.
Não era a primeira vez que o encontrava por ali, visitando a sepultura do jovem que morrera três anos atrás; já o havia visto diversas vezes, numa frequência não tão normal. Os familiares costumam visitar os parentes mortos na data da sua morte, mas não aquele homem, ele vinha pelo menos uma vez por mês, às vezes até mais.
O rapaz moreno, sempre que vinha, costumava ficar uma hora em frente ao túmulo, olhando-o com um rosto amargurado. Mesmo não sabendo o que se passava na cabeça do dele, não escapava das atentas vistas do coveiro os ombros caídos, o olhar melancólico e a garrafa de álcool, fechada, na mão.
Ele ainda não havia superado a perda, não havia dúvidas…
O coveiro perguntava-se: Qual era a relação do pobre rapaz com o falecido? Irmãos? Amigos? Talvez… Namorados?
Uma vez, não contendo a curiosidade, ele aproximou-se — mesmo consciente que invadia a privacidade alheia — e o que avistou nos orbes escuros lhe cortou o coração. Ele viu a tristeza e dor gravados naqueles bonitos olhos acompanhados com a fosca culpa.
Qual a razão para aquele remorso?
O coveiro nunca saberia e jamais teria coragem de perguntar, contudo, depois daquele dia, todas as noites, quando orava para dormir, lembrava-se de pedir a Deus que estendesse sua mão e ajudasse aquele pobre rapaz a encontrar a saída do sofrimento. Por acreditar que todos merecem uma segunda chance e tenham o direito de serem perdoados, terminava a súplica dizendo:
“Deus, conforte aquela alma e o ajude a perdoar a si mesmo!”
Culpa é um sentimento complicado de lidar. Como superar, se perdoar ou aceitar que você não é o responsável? Vejo pessoas se culpando por tragedias que acreditam que poderiam ter evitado se tivessem tido uma atitude diferente. A menina que se culpa pela morte do irmão. A filha que se culpa pela morte da mãe. Tragedias não são culpa de alguém (a não ser do assassino, quando existe um), são acontecimento que nós, meros humanos, não podemos prever.